Filme mais recente de Kleber Mendonça Filho, “O Agente Secreto” saiu muito vitorioso no Festival de Cannes desse ano e segue como favorito do Brasil ao Oscar de 2026. O elenco encabeçado pelo experiente Wagner Moura dá vida a um Brasil da década de 70, com tensões à flor da pele e uma ambientação típica do seu diretor. Mesmo com questões latentes, o filme faz jus a sua pretensão de representar o Brasil, pois, acima de tudo, consegue ser um retrato altamente fidedigno da nossa identidade nacional.
Em pleno carnaval de 1977, acompanhamos Marcelo, um homem que há pouco perdeu sua esposa e que está fugindo para Recife para se refugiar da mesma perseguição que levou à morte de sua companheira. Em Recife, sua terra natal, Marcelo reencontra seu filho Fernando e começa a planejar uma fuga para o exterior. Ao passo que busca ajuda de aliados para escapar, ele precisa se refugiar numa residência provisória, onde encontra outros em situação similar. Enquanto tenta se esquivar de suspeitas, Marcelo testemunha o quanto a violência está entranhada na estrutura social do Brasil.
“O Agente Secreto” é um filme que precisa ser digerido aos poucos. Uma vista apressada pode acabar deixando uma sensação ruim em nossas entranhas. O começo do filme, por exemplo, me foi uma experiência um tanto quanto confusa. São muitas mensagens que o filme tenta nos trazer, mas sem um direcionamento muito claro à primeira vista. Aos poucos vamos nos acostumando a apenas presenciar aquelas interações e isso traz um efeito que já fica evidente logo de cara, mas que está presente em todo o longa. A atmosfera criada pelo filme para nos contar sua história é peculiarmente leve, mas envolta numa tensão sufocante. Talvez isso seja o artifício de seu diretor para nos causar um impacto ainda maior quando ele nos traz as sequências mais marcantes. São esses solavancos que exigem uma certa assimilação maior da nossa parte.
Se tem algo que o filme tem de impecável é sua ambientação. De longe, esse foi o atributo mais tocante para mim. Sem dúvidas esse é um filme muito Brasil e acima de tudo um filme muito Nordeste. Desde o caminhão gaiolão de cana que aparece na estrada do início do filme até a cena final na cidade do Recife, tudo me trouxe uma familiaridade muito gostosa. Isso nem de longe faz a experiência do filme ser restritiva, mas apenas demonstra o quanto Kleber tem um apreço por essa regionalidade em suas obras. Quando ele traz os cenários marcantes do Recife Antigo, o que me veio logo à mente foi seu documentário “Retratos Fantasmas” e o quanto ele deixa claro sua admiração e saudosismo por aquela atmosfera. Se isso já havia me admirado lá, fico ainda mais feliz que ele conseguiu trazer essa mesma sensação nessa sua nova ficção.
Esse é um filme que consegue navegar por vários gêneros, mesmo que de maneira peculiar em certos momentos. Acho que Kleber Mendonça está muito à vontade com essa obra, o que lhe permitiu experimentar certos conceitos de forma inventiva. Além da ambientação ter me tocado bastante, o longa traz uma série de referências e diálogos temporais, autorais e metalinguísticos que me deixaram realmente admirado. Incrivelmente as alternâncias tonais são tão bem executadas que não me causaram efeito negativo algum, ao contrário de uma outra escolha narrativa que o diretor traz com maior intensidade no final. Houve um momento que me quebrou a imersão com a obra, algo que geralmente é bem difícil para mim. Reconheço que essa foi uma escolha consciente da direção, mas que, ao menos em mim, não trouxe um efeito tão positivo, pelo menos não à longo prazo durante a experiência.
Há uma certa opção feita por Kleber Mendonça Filho que me deixou um tanto quanto abismado, pois me fez perder um pouco do impacto que eu poderia ter com o longa. Felizmente é algo bem rápido, mas acho que deva ser ressaltado. Não me refiro à estrutura narrativa e o modo como certas informações nos são dadas abruptamente. Isso sim, acho que causa o impacto necessário para nos trazer à tona que aquela realidade não foi a de um ou outro personagem marcante, mas algo corriqueiro de nossa história e que não havia um protagonismo capaz de salvar ou amenizar os problemas enraizados numa sociedade violenta e autoritária. Mas o que me refiro é em relação à uma escolha extra narrativa que poderia ser facilmente evitada, mas cada um tem seu próprio entendimento e não julgarei como algo que invalide todo o impacto e a mensagem trazida anteriormente.
De maneira estranhamente divertida somos carregados por uma trama que nos apresenta a crueldade das camadas sociais daquele Brasil e que assustadoramente nos remetem muito a uma realidade presente. É assustador pensar como o filme discute a violência entranhada naquele período da sociedade brasileira e perceber que hoje em dia muito disso ainda não mudou. Seja de forma sutil, seja de forma explícita, a todo momento a obra está nos apontando as injustiças, as hipocrisias e a crueldade do sistema vigente. Os jornais noticiam no filme quase 100 mortos no carnaval de Recife enquanto a polícia faz gozação desse número. Os jornais hoje em dia noticiam mais de 100 mortes premeditadas pela polícia de maneira assustadora e muitos ainda fazem pouco caso disso. Esse filme tem muito a dizer sobre nós como sociedade e por isso, acho especialmente necessário ser visto e compreendido pela população brasileira, aproveitando um momento em que o cinema nacional dá um respiro e alça voos cada vez mais distantes.
É preciso ressaltar também a atuação de todos e todas que figuram aqui. Não somente o já consagrado Wagner Moura traz uma humanidade cativante para seu personagem, como todas as demais pessoas a sua volta trazem uma naturalidade encantadora. Ouvir os sotaques, os trejeitos, as gírias e a espontaneidade daqueles personagens são um convite a mergulhar na obra de cabeça, esquecendo muitas vezes que estamos assistindo algo encenado. Além disso, em relação aos elementos técnicos, nada deixa a desejar. A obra traz uma beleza estética encantadora, com uma fotografia vivaz, uma trilha sonora magnífica — que novamente faz uma ode à cultura local — e uma montagem perspicaz.
Esse é um filme longo mas em nenhum momento cansativo, mesmo no seu confuso primeiro ato. Com certeza o ritmo é um dos pontos cruciais que fazem esse filme funcionar. Graças a uma montagem consciente, atravessamos essas partes nebulosas com certa facilidade. Esses pontos iniciais eram os que eu mais me via desgostoso com o longa logo após a assistida, mas sinto que, agora escrevendo, a obra me faz ainda mais sentido e até mesmo o que eu falei de como o filme precisa ser digerido, no momento, ganha ainda mais significado. Acredito que essas questões inquietantes estejam muito ligadas às suas próprias pretensões como obra e à maneira como a fórmula narrativa usada nos traz esses choques atordoantes, mas que nos tem muito a dizer.
Sem dúvidas essa obra me tocou profundamente e por isso me fez, ao longo da experiência, relevar algumas inconsistências que me inquietaram de início. Assim como “Ainda Estou Aqui”, acho esse um filme necessário e que, cada um à sua forma, nos comunicam pontos consonantes acerca da nossa história, memória e sociedade brasileira.
Nota do autor:

| Título Original | O Agente Secreto |
| Lançamento | 2025 |
| País de Origem | Brasil/França/Holanda/Alemanha |
| Distribuidora | Vitrine Filmes |
| Duração | 2h38m |
| Direção | Kleber Mendonça Filho |
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