“Uma Família Feliz” é um suspense nacional que confirma o amadurecimento de nosso cinema na tarefa de tensionar o quotidiano com maestria. Sob a direção de José Eduardo Belmonte e com roteiro de Raphael Montes, o filme investe numa premissa simples — uma família de classe média alta, aparentemente perfeita — e vai descascando, aos poucos, a beleza da fachada para revelar fissuras profundas.
A protagonista, Grazi Massafera (Eva), recém-mãe de um bebê, com duas gêmeas ao lado, vive em um condomínio reservado. Mas o nascimento do filho e a depressão pós-parto que a atinge começam a virar o mundo dela de cabeça para baixo — e o do marido Reynaldo Gianecchini (Vicente) também. Quando as meninas passam a apresentar hematomas e o mistério se instala, a tensão se eleva: o filme mostra a vida idealizada tombando sob os olhos da sociedade e de seus próprios membros.
A direção de Belmonte se destaca por saber trabalhar o suspense com paciência. Em vez de recorrer a sustos fáceis ou explicações grosseiras, o filme prefere insinuar, sugerir — o que é justamente parte de sua força. Como observamos, há pouco a dizer explicitamente, mas muito a sentir e a imaginar.
A montagem e o som colaboram para criar essa atmosfera de desconforto latente: a casa que deveria ser porto seguro vira palco de suspeitas, silêncios pesados e olhares que mudam de lugar.
E chegamos ao que mais me impressionou: as atuações. Grazi assume o papel de uma mulher em crise — e o faz com intensidade contida, evitando caricaturas da “louca” ou da “vítima”. Ela transmite fragilidade e convicção ao mesmo tempo, tornando Eva alguém no qual podemos tanto simpatizar quanto desconfiar. Gianecchini seguiu à altura, compondo um Vicente que parece cuidar, mas que também se afasta, não percebe, ou talvez ignore. O elenco infantil — as gêmeas interpretadas por Luiza Antunes e Juliana Bim — se sai muito bem, ainda mais considerando o cuidado da produção ao lidar com temáticas pesadas envolvendo menores.
E quanto aos temas? São múltiplos: maternidade, expectativa social de perfeição, culpa, trauma, máscaras familiares, forças invisíveis que corroem o lar. O filme aponta que a “família feliz” nem sempre é o que parece — e que o silêncio, a aparência, a conveniência, às vezes escondem perigos reais. A crítica social está ali, porém sem se tornar panfletária: o roteiro se ocupa mais em gerar angústia do que em bradar juízos morais fechados.
Mas nem tudo funciona de modo irrepreensível. Em certos momentos, a narrativa parece deixar pistas demais ou tropeçar no próprio suspense — há lacunas que o espectador crítico vai notar, especialmente no desfecho.
O ritmo, por vezes, se ressente de pequenos lapsos; embora a tensão seja constante, há momentos em que o filme poderia ter se poupado de acelerar ou explicitar o que já estava funcionando na sugestão. Ainda assim, são defeitos que não comprometem a experiência como um todo.
A fotografia, a ambientação do condomínio de classe média, os enquadramentos que colocam Eva em espaços de confinamento ou observação — tudo ajuda a dar corpo à sensação de que algo escapa, de que o lar virou palco de vigilância e suspeita. A técnica aqui acompanha o conceito com segurança.
Se o cinema brasileiro deseja mostrar que pode produzir thrillers de nível internacional sem perder a identidade — e que pode olhar com honestidade para corpos, laços, tabus, maternidade — “Uma Família Feliz” faz sua parte. Não é perfeito, mas talvez seja um dos exemplares de como podemos levar o gênero e a ideia de “identificação nacional” juntos.
Para quem gosta de suspense psicológico, de histórias que incomodam e que permanecem após apagar as luzes, esse filme vale ser visto. Ele nos lembra que sob a aparência de “normalidade” muitas feridas podem existir — e que o espectador, ao invés de se sentar confortável, pode sair perturbado. No bom sentido.
Nota do autor:

| Título Original | Uma Família Feliz |
| Lançamento | 2023 |
| País de Origem | Brasil |
| Distribuidora | Globo Filmes |
| Duração | 1h55m |
| Direção | José Eduardo Belmonte |
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