Ousmane Sembène é considerado como o “pai do cinema africano” e traz já em seu primeiro longa-metragem os conceitos que se tornaram chave em sua filmografia. Além de ser uma importante figura para a propagação do cinema em seu continente enquanto produtor cinematográfico, Sembène realiza uma obra poética impactante cultural e socialmente. A Negra de… é uma obra forte e que tem muito a dizer ainda nos dias atuais, seja sobre identidade, sobre história ou sobre cinema.
Acompanhamos na trama uma jovem chamada Diouana que vive em Dakar, capital do Senegal. Em busca de ascensão numa sociedade pobre sob dominação europeia francesa, ela sai a procura de um emprego e acaba sendo seduzida por uma oferta de trabalho para patrões franceses. Logo, ela é convidada a ir trabalhar na França, na casa de seus patrões, o que Diouana prontamente aceita, deslumbrada pelas ideias “fabulescas” de morar e conhecer a Europa. Porém, o conto de fadas da jovem bate de frente com a dura realidade que a aguarda.
A pegada psicológica foi uma das questões que mais me prenderam ao filme. Acompanhar o processo penoso de desilusão da protagonista diante do mundo desigual que ela se depara é cruel e, mesmo assim, muito real. A narração em off da personagem nos traz um pouco do que ela acaba sendo impossibilitada de falar, graças ao processo de silenciamento que sofre na casa de seus patrões, ou poderia dizer, seus senhores. Temos acesso assim, aos seus pensamentos mais íntimos e somos capazes de perceber como, aos poucos, sua mente vai amadurecendo, de uma idealização juvenil, até uma constatação crítica do mundo ao seu redor.
Toda essa construção não é à toa. Seu diretor sabe muito bem tratar do tema pois viveu na pele essa realidade. O filme parte de um conto escrito por Sembène e consegue nos passar de forma muito verossímil a realidade de seu país e sua época. A meu ver, tem uma grande influência dos pensamentos decoloniais e funciona como um meio de crítica aos processos colonialistas modernos dos países europeus. Sua importância como propagador dos ideais de decolonialismo podem conectá-lo aos pensamentos do filósofo francês Frantz Fanon. Sendo seu diretor contemporâneo de Fanon e também adepto das ideias de decolonialidade, esse filme têm muito a acrescentar numa ideia de criação de pensamento de pan-africanismo crítico e se comunica muito bem com seu continente de origem.
O filme tem um capricho em todas as suas áreas, desde a fotografia crua e realista até a trilha sonora com realces de tambores e cantos africanos. Além de contar com simbolismos e detalhes visuais que acrescentam muito a mensagem do roteiro. Acredito que eu não tenha sido capaz de interpretar todos, mas consigo apreciar a perspicácia de seu realizador em transmitir sua mensagem por meio de tantos artifícios diferentes, sem contar a própria narrativa do filme. Para mim, o filme foi envolvente do início ao fim, com a minha atenção presa aos desdobramentos da vida de Diouana. A direção consegue causar uma empatia para com a personagem, principalmente com as cenas do seu cubículo pessoal e sua narração subjetiva.
O ambiente hostil é tão opressor que a moça não consegue nem mesmo se expressar com palavras, muitas vezes, sofrendo o processo de emudecimento por completo. Numa cena já perto do final, quando o patrão entrega dinheiro para ela e deixa algumas notas caírem no chão como uma espécie de esmola, Diouana cai com os pulsos juntos, de joelhos, numa posição que parece estar presa por correntes. Essa cena foi bastante impactante para mim. Essas e outras rimas são apresentadas como elementos narrativos conscientes por parte da direção para causar choques e reflexões.
Além disso, outro elemento importante para a narrativa é a máscara africana que Diouana traz consigo para sua nova moradia. Ela é um objeto de muita representatividade no filme e simboliza a cultura tradicional africana, mas também o peso da opressão dos brancos. Ela literalmente persegue os invasores europeus, na figura do pai ao final do filme — servindo também como uma espécie de representação de sua culpa. Por mais que ele tente apagar o delito através do seu poder, a recusa da mãe de Diouana deixa bem claro que os horrores da opressão e escravidão não podem ser simplesmente apagados da história. O elemento perpassa seu espaço simbólico culturalmente e assume um papel alegórico para a personagem da própria empregada, que no final, consegue retomar suas raízes — retomando a máscara a sua terra natal — numa cena marcante, apontando para o desfecho final que tem muito a ver com sua ancestralidade e com a postura impactante adotada pelo diretor na obra.
Mesmo sendo curto, o filme apresenta um complexo desenvolvimento de personagem por parte da protagonista. De um início ingênuo e até mesmo infantil, vemos ela se tornar uma pessoa ciente da realidade em que vive e todo o vislumbre que encobria sua visão de mundo cai por terra quando ela é submetida à escravidão moderna. Tudo isso me fez sentir muita empatia pela personagem central e causou um peso enorme na sua decisão pelo suicídio. Essa decisão, porém, remete muito ao que ocorria muitas vezes entre os escravizados dos séculos XVII a XIX, quando o suicídio era uma forma de resistência contra a dominação dos dominadores brancos e servia como maneira de se libertar, tanto física, quando simbolicamente das correntes da escravidão.
Sem dúvidas esse é um filme forte, mas que tem uma condução bastante ciente de sua força e sabe muito bem nos comunicar suas mensagens de maneira bem direta. Sua representatividade também é um marco e seja como experiência, ainda hoje, ou como retrato histórico, é uma obra que permanece bastante atual e palpável.
Nota do autor:

| Título Original | La noire de… |
| Lançamento | 1966 |
| País de Origem | França |
| Distribuidora | Janus Films |
| Duração | 1h5m |
| Direção | Ousmane Sembene |
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