- INTRODUÇÃO
O tão próximo, mas tão distante Cinema Latino-Americano é um cinema mais próximo geograficamente do Brasil, mas distante do ponto de vista do consumo ou da nossa relação atual com ele. Atualmente, somos muito mais influenciados pelas culturas cinematográficas de língua inglesa do que de línguas latinas e isso reflete muito o passado e o presente do Brasil como território dominado pelo imperialismo estrangeiro. Porém, ao longo do século XX, houveram movimentações muito importantes na América Latina numa tentativa de unificar e agregar o cinema da região e criar um movimento revolucionário próprio para a arte de seus países.
Nós do Brasil compartilhamos muito da nossa história com nossos irmãos falantes do Espanhol. Além do passado colonial, um presente comum no século XX foi a influência americana e a instauração de governos autoritários em diversos desses países da América, como Argentina, Chile e evidentemente o Brasil. Com as histórias em comum a esses países, como as ditaduras militares e o subdesenvolvimento frente ao ocidente do hemisfério norte do globo, além da grande influência do cinema exterior nos seus territórios, os vanguardistas do Cinema Novo Brasileiro foram vozes importantes no intuito de fomentar uma união entre os cinemas de cada um desses países latinos para uma produção intelectual e fílmica próprias. Glauber Rocha, renomado cineasta do movimento e talvez o mais célebre de todos, foi um dos pioneiros a imaginar um cinema latino-americano unificado que poderia lutar junto pelos ideais revolucionários que a arte possibilitaria trazer para todo o terceiro mundo. Seu clássico “Terra em Transe” (1967), por exemplo, evidencia ainda mais essa preocupação com a união regional.
A partir do Encontro de Cinema Latino-americano de 1967, no V Festival Cinematográfico de Viña del Mar, no Chile, as propostas de um cinema mais participativo foram discutidas por cineastas de diversas partes da América-Latina. As propostas iam desde as temáticas, que deveriam se preocupar com o retrato interno de cada cultura, a uma proposição do Cinema de Autor como estilo cinematográfico principal, favorecendo a criatividade e inventividade das obras em contraponto as clássicas obras que vinham de Hollywood e as nacionais que as emulavam. O artista visual argentino Carlos Trilnick ressalta sobre o festival que “Pela primeira vez, homens e mulheres cineastas de países latino-americanos reuniram-se para elaborar estratégias de realização cinematográficas na região onde se potencializou uma consciência cultural própria.” (tradução nossa) (s.d.)¹ .
Foi com a revolução cubana de 1959 que surgiu um dos mais importantes veículos viabilizadores do cinema na América-Latina. O Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), além de patrocinar obras cubanas também coproduziu filmes em diversos outros países. Mas é de Cuba que vem a obra central em questão deste artigo, o primeiro e único filme da diretora Sara Gómez, “De Cierta Manera” (1977). O longa foi gravado em 1974, mas a diretora morreu antes de concluir sua produção, que só foi lançada em 1977.
- DESENVOLVIMENTO
O movimento que ficou conhecido como “Novo Cinema Latino-americano” tem origens diversas e até denominações distintas. Cada uma delas carregando um pouco mais de algum dos aspectos que formam a gama de conceitos e perspectivas dessa corrente cinematográfica. Os cineastas Octavio Getino e Fernando Solanas descrevem-no como “Tercer Cine” — terceiro cinema.
O Terceiro Cinema é para nós o que reconhece nesta luta a mais gigantesca manifestação cultural, científica e artística do nosso tempo, a grande possibilidade de construção de uma personalidade libertada de cada povo: a descolonização da cultura. (tradução nossa) (GETINO; SOLANAS, 2010).
O movimento, que não tem um tom ou desenvolvimento uniforme, recebeu o apoio e a influência de realizadores latinos espalhados por diversos países. O Novo Cinema Latino-americano foi influenciado pela política dos autores da Nouvelle Vague, mais por uma questão política do que propriamente estética; pelo movimento Neorrealista italiano e também pelas perspectivas de cinema da escola soviética. Glauber Rocha aponta que “A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” (2019) e complementa ainda dizendo: “Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical.” (2019). Assim, o artigo “Uma Estética da Fome”, de autoria de Glauber, foi um importante marco não só para o Cinema Novo Brasileiro, como também para todo o universo cinematográfico latino.
Já num contexto de uma Cuba pós-revolução, uma proeminente jovem diretora negra cubana ganha notoriedade. Sara Gómez, após lançar 10 documentários em curta metragem, ganha o incentivo do órgão governamental de cinema cubano, o ICAIC, para produzir seu primeiro e único longa-metragem. Brilhantemente, unindo sua grande perspicácia em apresentar histórias no formato documental, “De Cierta Manera” (1977) apresenta uma narrativa que brinca com a dualidade entre o que é ficcional e o que é real na trama.
No filme podemos encontrar diversos pontos propostos nos intercâmbios culturais entre cineastas latinos anteriores a sua produção. Mesmo sendo uma produção amparada pelo estado, o contexto do filme, que mostra uma Cuba após a revolução de maneira crítica e com apurado grau de realismo, apresenta críticas sociais à pobreza e as implicações que a revolução causou na moral dos cidadãos cubanos. A diretora se mostrou livre para desenvolver uma obra bastante autoral, com estilo e estrutura narrativos próprios, misturando o real com o documental, quase sem barreiras. Uma das principais e mais marcantes cenas do longa se repete algumas vezes durante sua duração, trazendo até mesmo mais de um significado: uma bola demolição que anuncia a derrubada dos antigos alicerces da sociedade cubana conservadora para dar lugar ao novo modo de vida pós-revolução. Nisso tudo podemos ver as claras influências do Neorrealismo e do Cinema de Autor, da Nouvelle Vague, assim como defendia o movimento do “Nuevo Cine Latinoamericano”.
A estrutura do roteiro é bastante peculiar com a mistura de passagens reais e ficcionais. Há personagens fictícios criados exclusivamente para a trama e outros que retratam pessoas da cidade de Havana, onde o filme se passa. Na história acompanhamos um casal, Yolanda e Mario, que estão buscando selar sua relação, mas algumas questões relacionadas a suas vidas e à sociedade entram no seu caminho. Enquanto isso, somos expostos a cenas da realidade dos bairros periféricos de Havana e a vivência de seus moradores e trabalhadores.
A trama introduz os personagens fictícios intercalando passagens da sequência narrativa com passagens narradas no estilo de um documentário clássico. Assim, o tom real que é produzido com a escolha de não atores para os papéis do filme é ainda mais reiterado com as contextualizações históricas e da vida cotidiana de Cuba após a revolução, expostas nas vozes dos narradores. Ainda sobre a revolução, o longa é pertinente ao mostrar como algumas ideias conservadores pré-estabelecidas e enraizadas na sociedade cubana de antes da revolução ainda permeiam e resistem às novas ideologias adotadas no país.
A obra de Sara é permeada por diversas dualidades, como apontam as professoras Cláudia Mesquita e Roberta Veiga em seu artigo “O feminismo de Sarita: limiar, dialética e interseccionalidade em De Cierta Manera”. Além da clara relação entre o documental e o ficcional, as autoras ainda levantam os conflitos entre revolução e marginalização, além do choque que dá um desenvolvimento dramático à narrativa que é o par machismo-feminismo. É notório também que, num contexto pós-revolução socialista, há uma disputa ideológica entre o conservadorismo e o socialismo, num confronto entre o público e o privado. A mentalidade ainda antiquada de alguns personagens, principalmente o de Mario, é exposta como forma de criticar os problemas sociais inter relacionados que persistiam em Cuba mesmo após a revolução.
Ainda para as professoras Cláudia Mesquita e Roberta Veiga, o filme relata a Cuba mais real do que ficcional em diversas de suas cenas, mesmo quando os personagens protagonistas fictícios estão em primeiro plano.
Algumas cenas realizam incrustações dos atores em situações reais, filmadas de modo documental, como as do início do filme, que apresentam Miraflores e a questão educacional na Cuba pós-revolução. Tanto Mario como Yolanda aparecem inseridos nesses trechos de enunciação não-ficcional como se fossem personagens “de documentário” ou como se a ficção estivesse realmente inscrita na experiência histórica, dando forma aos impasses do processo revolucionário atual (MESQUITA; VEIGA, 2021, p. 8).
Outro ponto que aparece na trama, enraizado em seu subtexto, é o problema do racismo. Sara Gómez apresenta esse como mais um dos tantos empecilhos para a relação entre Yolanda e Mario. O que fica evidente nos comentários de algumas amigas de Yolanda, em determinado momento do longa. Sendo Yolanda branca de classe média, sua relação com um negro pobre e trabalhador, como é o caso de Mario, é questionada. Para a historiadora Ana Maria Veiga, “o racismo também está presente e é colocado em cena de maneira política pela cineasta.” (2018, p. 39). As problemáticas arraigadas à vida de uma pessoa negra em contraposição a uma pessoa branca são apresentadas na trama de maneira honesta e visando apresentar um certo grau de subjetividade, sendo Sara uma mulher negra, num contexto em que nenhuma outra diretora jamais havia dirigido um filme em seu país.
O contraste é também uma ótima ferramenta utilizada pela diretora para expor críticas sociais interessantes. Através do desenrolar da história do casal protagonista somos apresentados a contextos bastante cotidianos de diversas sociedades da América Latina. Com essa familiaridade podemos identificar questões problemáticas como a pobreza, o trabalho, a moradia e principalmente a educação que ganha enfoque na trama por Yolanda ser professora. Assim o filme é inteligente em quase que documentar certas histórias reais para elucidar que muitos dos problemas não foram instantaneamente curados com a revolução e necessitam de maior olhar do estado para que as feridas da colonização estrangeira sejam curadas. Realidade similar em diversos outros territórios da América Latina, incluindo o Brasil que foi contemplado com o Cinema Novo que trazia críticas semelhantes.
A estrutura narrativa é bem moderna para a época e foge do desenvolvimento clássico hollywoodiano. Com uma introdução que se conecta e se explica com o final do longa, nossa atenção consegue ser presa e passeia pelos olhares dos protagonistas e seus questionamentos sociais. Ademais, a história sempre toca na questão do machismo e uma cena persiste em se repetir se tornando bem marcante no final da narrativa. A bola de demolição que vemos destruir as bases de um antigo bairro da cidade pode ser também vista como uma representação clara da demolição das morais preconceituosas para dar lugar a uma visão mais feminista da vida em sociedade com uma preocupação não só com os meninos, mas também com o futuro das meninas e das mulheres que tem que lutar pelos seus lugares no mundo. Mais uma demonstração da boa condução da diretora Sara Gómez.
Mesmo com uma morte precoce, Sara nos deixa uma obra que retrata muito bem seu tempo e demonstra diversos problemas sociais arraigados à nossa sociedade latina, trazendo bons questionamentos e reflexões com o intuito de formar um pensamento crítico em seus espectadores e criar, através da arte, uma sociedade mais consciente e aberta. Além disso, esse filme é um exemplar certeiro do que podemos considerar o cerne do movimento do Terceiro Cinema, ou Novo Cinema Latino-americano.
- CONCLUSÃO
As mesmas pressões políticas que enfraqueceram o Cinema Novo Brasileiro também ocorreram nos diversos países do continente e impuseram aos seus cineastas mais radicais a fuga e refúgio em outros países, principalmente da Europa. Assim, o cinema latino-americano se enfraqueceu novamente e o cinema norte-americano terminou de concretizar sua conquista da hegemonia na região. Nas décadas de 80 e 90, porém, houveram retomadas das produções latinas com a atmosfera de maior liberdade política e social para a arte e daí vários filmes trouxeram referências a esses movimentos clássicos de seus países, mas adotando um estilo mais comercial visando garantir o lucro para suas produções num mercado já dominado pelas obras do exterior que não permitiam mais espaço para muitas experimentações como os antigos haviam feito. Dessa nova onda de filmes surgiram alguns clássicos que revitalizaram o cinema nacional nos seus respectivos países, mesmo ainda enfrentando o preconceito de parte de sua própria população com obras conterrâneas.
Atualmente, nos anos mais recentes, são mais notáveis para nós as obras que o cinema latino-americano anda produzindo, muitas delas em parceria com produtoras estrangeiras numa forma de adaptação do modelo de produção, sem deixar de lado a cultura de seus países. Alguns diretores importantes do cinema hollywoodiano também migraram da América Latina, a exemplo de Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro. Ultimamente ocorre uma redescoberta da nossa contiguidade tão óbvia com os nossos países vizinhos e obras como “Argentina, 1985” (2022) demonstram essa proximidade tanto geográfica, quanto histórica.
Enfim, fica clara a carência do espectador latino em conhecer o seu próprio cinema e os cinemas vizinhos irmãos que passaram por movimentos e repressões tão parecidos aos ocorridos aqui em terras brasileiras. Somente assim seremos capazes de perceber que não fazemos fronteira com os Estados Unidos ou com a Europa, mas sim com Argentina, Uruguai, Colômbia, Venezuela, Equador e tantos outros países ao nosso redor na América Latina.

Onde Assistir?
(não oficial)

Referências:
DE CIERTA MANERA. Direção: Sara Gómez. Produção: Sara Gómez. Roteiro: Julio García Espinosa, Tomás González Pérez, Tomás Gutiérrez Alea e Sara Gómez. Fotografia de Luis García. Cuba: Instituto Cubano del Arte e Industrias Cinematográficos (ICAIC), 1977.
GETINO, Octavio; SOLANAS, Fernando. Hacia un tercer cine. RUA – Revista Universitária do Audiovisual, 15 set. 2010. Disponível em: https://www.rua.ufscar.br/hacia-un-tercer-cine/. Acesso em: 24 out. 2024.
KREUTZ, Katia. Cinema Latino-Americano. Academia Brasileira de Cinema, 20 mar. 2019. Disponível em: https://www.aicinema.com.br/cinema-latino-americano/. Acesso em: 18 out. 2024.
MESQUITA, Cláudia; VEIGA, Roberta. O feminismo de Sarita: limiar, dialética e interseccionalidade em De Cierta Manera. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, [S. l.], v. 48, n. 55, p. 17–35, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-7114.sig.2021.168457. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/168457.. Acesso em: 18 out. 2024.
ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome. In. CINTRA, André. Leia a íntegra do manifesto Uma Estética da Fome, de Glauber Rocha. Vermelho. 15 mar. 2019. Disponível em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/leia-a-integra-do-manifesto-uma-estetica-da-fome-de-glauber-rocha/. Acesso em: 24 out. 2024.
TRILNICK, Carlos. Nuevo Cine Latinoamericano. Proyecto IDIS, Argentina, (s.d.). Disponível em: https://proyectoidis.org/nuevo-cine-latinoamericano/. Acesso em: 18 out. 2024.
VEIGA, A. M. Radicalizar o “Cine Imperfecto” cubano – Sara Gómez. História Revista, Goiânia, v. 23, n. 1, p. 28–48, 2018. DOI: 10.5216/hr.v23i1.51912. Disponível em: https://revistas.ufg.br/historia/article/view/51912. Acesso em: 18 out. 2024.
Notas:
¹ O artigo do site original apresenta uma data que se mostra incorreta levando em consideração a própria temática abordada. A publicação aparece datada de 2 de agosto de 1958, quando nem mesmo o próprio festival havia sido realizado e muito menos havia qualquer tecnologia para postagem de material online naquela época.




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