Expressionismo e cinema
O Expressionismo se ergue no final do século XIX, em uma época de surgimento e crescimento do mercado cultural de massas, onde as tecnologias modernas de transporte e de comunicação internacionalizaram a arte, e as criações artísticas europeias começavam a sofrer influências do Extremo Oriente e dos países africanos. O historiador da arte Roger Cardinal fala sobre como as experiências emocionais do artista ganham formato e essa forma “convida o espectador a experimentar um contato direto com o sentimento gerador da obra” (1988, p. 34). E que o Expressionismo é uma tendência atemporal por poder se manifestar em diferentes situações e ambientes.
Em 1922, Robert Wiene definiu a relação entre Expressionismo e cinema. Ele fala que o Naturalismo e o Impressionismo foram muito marcantes. Até que em 1909-10, houve um movimento contrário ao que foi deixado pelo historicismo. E contra toda arte realista aparece o Expressionismo. E é através dele que nós agora temos um profundo sentimento da irrelevância da realidade e do poder do ilusório: o poder do que nunca foi, de algo que foi apenas uma sensação, ou a projeção de um estado mental sobre o entorno de alguém. E o cinema se presta a representar esse ilusório através do Expressionismo.
Entre 1918 e 1933, a “República de Weimar” se instaurou na Alemanha, o país antes era um império, até se tornar república com o esfacelamento da coesão política interna. Durante o período entre 1919 e 1924, a produção de filmes no país foi baixíssima, e apenas um deles realmente teve sucesso: O Gabinete do Doutor Caligari (Robert Wiene, 1920). Robert Wiene, nascido em 27 de abril de 1873 em Breslau, na Alemanha, foi um famoso cineasta expressionista da era do cinema mudo, que dirigiu seu primeiro curta-metragem em 1913. Em seus 25 anos de trabalho como diretor, lançou cerca de 50 filmes, mas eternizou seu nome com “O Gabinete do Dr. Caligari“, que foi considerado o marco zero do movimento expressionista alemão.
Resumo
“O Gabinete do Doutor Caligari” inicia com a imagem de dois homens sentados no banco de um parque. Francis, que também é narrador da história, conta para o outro homem sobre acontecimentos de sua vida, mais especificamente sobre coisas que aconteceram com seu amigo Alan e sua noiva Jane.
A câmera sai do parque, no presente, e os eventos passados entram em cena. A famosa feira de Holstenwall ganha uma nova atração, um operador de espetáculos chamado Caligari que, com seu gabinete de hipnotismo ambulante, expõe Cesare, um homem sonâmbulo que dorme desde o dia de seu nascimento, que passa seus dias em um caixão, e que supostamente pode prever o futuro enquanto está hipnotizado. Francis e seu amigo Alan ficam curiosos pelo espetáculo. Alan decide perguntar quando será o momento de sua morte. O doutor responde que ele morrerá ao amanhecer, e é exatamente o que ocorre na manhã seguinte. Todas as suspeitas caem sobre Cesare.
Em seguida, o sonâmbulo tenta matar Jane, e ao falhar opta por raptá-la. Francis se preocupa com as atividades sinistras do Dr. Caligari e inicia uma investigação dos assassinatos misteriosos que ocorrem na cidade. Ele descobre a verdade chocante por trás dos crimes e o que o médico tem feito em segredo. No decorrer do filme, descobrimos que Francis está internado em um hospital psiquiátrico e que o Dr. Caligari é, na verdade, o diretor do hospital e responsável pelas mortes ocorridas. O filme termina com um confronto entre Francis e o Dr. Caligari, onde Francis é restringido pelos médicos e enfermeiros do hospital. A história do filme é baseada nas experiências de Mayer com psiquiatras e em alegações de Janowitz sobre o caso do assassinato de uma moça no parque Holstenwall, em Hamburgo. Inicialmente, o roteiro era uma crítica à violência de diferentes autoridades sociais, segundo Robinson.
Cenário, iluminação e maquiagem
Segundo Jung, o estilo expressionista de Caligari foi uma estratégia para promover o cinema alemão para o público que ainda tinha preconceitos com a sétima arte, que na época do lançamento do filme ainda era muito recente. Os cenários tortos e impactantes se mostram desde o início do filme, quando Francis cita sua cidade e a cena é cortada para a imagem de casas empilhadas, tortas e pontudas que trazem impacto ao espectador.
Para além dos formatos desse cenário, as cores da cidade desempenham um papel muito importante nos elementos cenográficos. Na imagem, as casas apresentam diferentes tons de cinza, preto e branco. Nesse caso, as casas realmente foram pintadas de diferentes cores, e são utilizadas para dar profundidade e noção de distância com jogo de luz e sombra, que traz um enriquecimento para a obra e mostra o apego aos detalhes que a direção de arte teve.
A escolha de construir os cenários dentro do estúdio apresenta uma tentativa de distanciamento do mundo tecnológico e racional tão prezado pelo Ocidente. Apesar de essas mesmas armas possibilitarem a invenção do cinema, é uma escolha muito interessante de criticar e relembrar os temores da Primeira Guerra Mundial, que ainda ecoavam fortemente, com a economia completamente decadente e as ruas lotadas de vítimas sociais da guerra. E o filme faz essa escolha de apresentar o mundo dos sonhos se contrapondo à realidade, contrário à razão violenta e cruel.
Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, Cesare rapta Jane depois da tentativa falha de matá-la. Segundo Kurtz (apud EISNER, 1985, p. 28), “a linha oblíqua tem sobre o espectador um efeito muito diverso da linha reta, e as curvas inesperadas provocam uma reação psíquica de ordem inteiramente diversa das linhas de disposição harmoniosa”. As linhas tortuosas do telhado da casa de Jane são muito características do Expressionismo, e eram encontradas em muitos cenários de peças teatrais na Alemanha antes da estreia de O Gabinete do Doutor Caligari.
Na cena seguinte, Cesare carrega o corpo de Jane por uma cenografia produzida de painéis pintados que evocam um mundo imprevisível e tortuoso, assim como a paisagem propositalmente irregular. Evitando formas realistas, a direção de arte reforça as curvas abruptas e a pouca profundidade, provocando inquietação e desconforto adequados à cena do sonâmbulo carregando o corpo da moça indefesa.
A primeira cena em que Cesare aparece, durante um dos espetáculos do Dr. Caligari na nova cidade, fica mais notável uma das técnicas utilizadas para deixar os personagens mais bizarros. Além das interpretações dos atores, que eram repletas de exagero e de movimentos que impactaram visualmente, a maquiagem pesada e deformada é muito importante. Exaltando o branco da pele pálida e as olheiras fortemente acentuadas, esses eram alguns dos atributos que davam destaque ao personagem.
A casa de Caligari também é muito curiosa e chama atenção ao aparecer em cena, pois é simplesmente macabra e inóspita, por causa de seu tamanho e formato repleto de linhas diagonais, enquanto suas paredes disformes deixam o ambiente ainda mais claustrofóbico. No canto da parede, tem uma janela oblíqua também disposta de forma irregular que completa esse ambiente semelhante a uma cela.
Personagens e roteiro
Visualmente, a imagem de Cesare se contrapõe à imagem do Dr. Caligari. Enquanto o Doutor é um idoso, baixo, de cabelos brancos e rugas profundas, Cesare tem cabelos pretos, e é alto e magro. Ambos os personagens se adequam perfeitamente à concepção expressionista: Cesare como sonâmbulo, isolado de onde vive cotidianamente, privado da individualidade, uma criatura abstrata que mata sem seguir alguma lógica, enquanto Caligari é inescrupuloso, insensível, e desafia à moral.
O fato do filme ser narrado pelo idoso que aparece na primeira cena já inicia no espectador um questionamento sobre a confiabilidade das palavras do mesmo. A história ainda traz em questão a saúde mental desse narrador, ou seja, o roteiro deixa em aberto essa possibilidade do narrador não ser uma voz confiável e ser distorcida pela insanidade do personagem.
A própria reviravolta, quando é dito que o Dr. Caligari é diretor do hospital psiquiátrico, mantém a atmosfera de tensão antes criada pela ideia desse narrador não confiável. Pois durante toda a trama é notável a representação de Caligari como essa figura perigosa, com alta capacidade de manipular com seus poderes hipnóticos.
A polêmica que aconteceu entre os roteiristas e o diretor, onde os roteiristas achavam que apresentar Francis como mentalmente incapaz alterava a ideia central do roteiro, que era a de questionar a subordinação cega à autoridade, não atrapalha de nenhuma forma a história. Na verdade, acredito que só possibilitou interpretações mais ambíguas.
O Caligari de Wiene não glorifica a autoridade e condena o antagonista à loucura, como disse Kracauer. O personagem se mostra muito coerente considerando a ambientação expressionista, já que justamente o cenário deformado não muda com a elucidação da loucura de Francis, ele permanece constante. A insanidade não é de forma alguma simplificada pelo diretor, o que é bem mais interessante por deixar aberta a diferentes análises e por não reduzir esse filme interessantíssimo a uma única alegoria quando ele tem camadas fascinantes.
Nota da autora:
Referências:
In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

| Título Original | Das Cabinet des Dr. Caligari |
| Lançamento | 1920 |
| País de Origem | Alemanha |
| Distribuidora | Decla-Bioscop AG |
| Duração | 1h16m |
| Direção | Robert Wiene |
Onde Assistir?





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