“I Saw The TV Glow” é uma experiência que exige do espectador certa cumplicidade para desbravar esses dois mundos assustadoramente familiares, com monstros que nos perseguem até a vida adulta, distorcendo o tempo e a realidade. Como o próprio filme sugere, é muito fácil se perder na espectatorialidade, de modo que somos arrancados da realidade na mesma intensidade com que somos cuspidos de volta ao mundo real.
Na sequência inicial do filme, o som de um programa de TV, acompanhado pelas risadas de uma plateia, antecede qualquer imagem. A tela preta dá lugar à primeira cena: uma rua com o chão riscado de giz, vazia, exceto por um caminhão de sorvete ao fundo. A câmera tenta se aproximar lentamente do veículo, mas, antes de alcançá-lo, o plano é abruptamente cortado para o protagonista sentado na sala, assistindo à TV. A sensação de estranhamento surge da quebra de expectativa entre o som inicial e as imagens que o seguem, já que eles não correspondem diretamente. Esse contraste, já no início da obra, sugere a presença de imagens que nem sempre são o que aparentam ser, provocando reflexões sobre a criação de expectativas e a fragilidade das certezas.
Ainda nessa sequência, Owen permanece em silêncio. Durante um comercial, porém, ouvimos as primeiras falas de Tara, uma das protagonistas de Pink Opaque: “Eles não podem te machucar se você não pensar neles.” A cena é acompanhada pelo olhar hipnotizado de Owen voltado ao comercial, enquanto Anthems For A 17 Year Old Girl toca ao fundo. A composição dessa cena inicial propõe muito bem a lógica desse universo em que a ficção antecede a realidade e às vezes se funde a ela. É uma introdução interessante a toda a atmosfera nostálgica que vai nos envolver ao longo da obra, seja pelos desenhos no chão da rua, na curiosidade de assistir a um programa novo quando se é criança , ou na ideia de ficar acordado depois do horário de dormir.
Owen e sua trajetória são reflexos de toda criança queer que cresceu tendo a televisão como fuga de uma realidade que não a abraça nem integra. O que, digamos, me fez conversar com o protagonista no plano psíquico da obra, em uma linguagem única que nem todo mundo consegue entender, nesse mundo onde a diferença às vezes é sinônimo de algo especial, mas também é uma lembrança de que a realidade, apesar de sufocante, precisa ser encarada.
Os vários planos que se repetem em que o personagem anda pelos corredores da escola ou pelas ruas vazias, sem um destino final, representam muito bem onde ele se encontra. Owen não vê um final, uma linha de chegada; tudo o que ele tem é essa trajetória sem expectativa de futuro, vivendo no automático. Esse vazio lhe parece mais fácil do que tomar consciência de sua própria existência e perceber que está preso em um corpo que não é seu, em uma vida que não lhe pertence, como se seu coração tivesse sido arrancado.
Em contrapartida à figura resignada de Owen, Maddie se apresenta como uma personagem sempre disposta a lutar por suas vontades e pronta para recomeçar quantas vezes for necessário. Ela está determinada a voltar para tentar salvar Owen das garras do senhor Melancolia e devolver seu coração, mesmo quando ele não quer ser salvo. Isso fica evidente na última cena em que Maddie aparece, propondo que ambos entrem no show para resgatar seus corações, mesmo que isso signifique serem enterrados vivos, porém mais uma vez Owen se recusa.
Os anos se passam e Owen segue sua vida tentando se fazer acreditar que nada daquilo aconteceu, como se tivesse tomado o suco lunar do senhor Melancolia. Há uma sequência muito interessante que mostra a transição das tecnologias e as mudanças em sua vida. Ele troca a antiga TV de tubo por uma smart TV e abandona o trabalho no cinema para ir ao parque de diversões. Considerando que todas as memórias de Owen e Isabel eram em formato de VHS; essa é mais uma tentativa de deixar o passado para trás. Mas vinte anos depois, Owen, em uma vida sem sentido, solitária e vazia, tem sua paz ou guerra invadida pela memória de Maddie. Permitindo que ele duvide daquela realidade, ou ficção, e olhe para o próprio interior, porque, afinal,“ainda há tempo”.
A cena final, em que Owen, no chão do banheiro do trabalho, abre seu próprio peito na frente de um espelho com um objeto pontudo e finalmente vê o brilho da TV, pela primeira vez vemos o reflexo do personagem sorrindo, afirmando que nunca é tarde para encontrar o próprio coração, passando para o espectador o mesmo sentimento de Maddie ao ver o primeiro episódio de Pink Opaque, que “A Isabel se assusta fácil, ela é a personagem principal, mas é meio lerda”, num misto de agonia e satisfação, propondo ao espectador uma autorreflexão: está ele onde seu coração está?Foi um filme que particularmente me tocou. Além da temática que me toca profundamente pela identificação, a trilha sonora original com Phoebe Bridgers e Caroline Polachek consegue transportar muito bem para a década de 90, assim como as referências a Buffy the Vampire Slayer, a fotografia excepcional e as cores riquíssimas, de quando o cinema não tinha medo de colorização.
Nota da autora:
Referências:
SONTAG, Susan. “Contra a interpretação”. In: ________. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 15-29.

| Título Original | I Saw the TV Glow |
| Lançamento | 2024 |
| País de Origem | EUA/Reino Unido |
| Distribuidora | A24 |
| Duração | 1h40m |
| Direção | Jane Schoenbrun |
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